*Artigo de Antonio Neto (disponível no site do Sindicato dos Trabalhadores em Processamento de Dados e Tecnologia da Informação do estado de São Paulo- Sindpd).
Via: Sinasefe Nacional (postado por ASCOM SINASEFE)
Merecia o maior prêmio mundial da propaganda a campanha perversa que foi empreendida nas últimas décadas contra a imagem dos servidores públicos no Brasil. Já houve um tempo em que eles eram muito valorizados e respeitados. Mas, como dizia Joseph Goebbels, “uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”. Foi assim que muita gente passou a acreditar na cantilena de que o funcionalismo público é o grande vilão nacional, responsável pelo desequilíbrio nas contas do Estado e por todos os grandes problemas do país.
Mas aí veio a pandemia, que provou a necessidade de um país ter serviços públicos de qualidade, como o nosso heroico SUS, com seus milhares de profissionais corajosos e incansáveis, que estão arriscando suas vidas e a de seus familiares para nos proteger; como os nossos Butantan e Fiocruz, com seus brilhantes pesquisadores e funcionários, que são responsáveis por produzir as vacinas que estão imunizando o nosso povo, em parceria com instituições internacionais; e como tantos profissionais essenciais para uma nação, como os professores, os garis e os policiais, entre outros.
São servidores públicos como esses que garantem a vida em comunidade. Que permitem que todos os cidadãos, mesmo os que não têm recursos, tenham direito pelo menos ao básico para uma vida digna, como saúde, educação, segurança, ruas limpas. Esses profissionais, em sua imensa maioria, ganham pouco e trabalham muito. Não são uma casta privilegiada, que existe, sim, no serviço público.
Mas, curiosamente, a proposta de reforma administrativa enviada por Paulo Guedes ao Congresso não toca na elite do funcionalismo, formada por políticos, militares, juízes e procuradores, os verdadeiros responsáveis pelas maiores distorções entre o setor público e o privado, com suas múltiplas benesses e penduricalhos em cascata.
Isso significa que quem vai pagar a conta das infinitas verbas de gabinete dos políticos, da picanha e do leite condensado dos militares, dos smartphones de última geração dos procuradores ou dos planos de saúde milionários dos juízes não serão eles. Se a PEC 32/2020 for aprovada, quem vai pagar essa conta será a enfermeira que se arrisca no hospital e o policial que se arrisca nas ruas, o professor da creche que ganha um salário de fome, o gari que recolhe o seu lixo. E talvez essa nem seja a pior parte.
A proposta de reforma cria novas formas de contratação que acabam com a estabilidade dos futuros servidores, exceto para as carreiras de Estado, e adivinha quais são elas? A PEC não especifica, elas deverão ser definidas posteriormente por lei. Mas há alguma dúvida de que será a nata de sempre? E, por estarem em lei e não na Constituição, poderão ser adicionadas ou eliminadas carreiras de Estado a qualquer tempo, mais facilmente, a depender das preferências e conveniências do governo de turno.
O fim da estabilidade significa que o fiscal que aplica uma multa em uma autoridade poderá ser demitido. O subordinado que denuncia a corrupção do chefe poderá ser demitido. Funcionários públicos poderão ser demitidos por preferências políticas ou preconceitos inconfessos de cor, gênero, classe. Por causa da roupa que usam, do penteado, do visual. Significa que haverá servidores de governo, não de Estado, que terão que seguir cegamente os seus superiores e aceitar ordens ilegais para manter o emprego. Significa que os governantes corruptos poderão manter nos cargos apenas os seus apaniguados que concordam com seus grandes e pequenos crimes. A PEC 32/2020 é a PEC da Rachadinha.
A insegurança quanto ao futuro e a possibilidade de sofrer pressões políticas, se o fim da estabilidade for aprovado, também provocará o efeito deletério de afugentar os melhores profissionais do serviço público. Tudo isso baseado no argumento falacioso de que a estabilidade produz servidores acomodados. Acontece que a estabilidade já não é absoluta hoje. A Constituição permite a demissão por meio de processo administrativo disciplinar e sentença judicial transitada em julgado. Há ainda uma outra possibilidade prevista, o procedimento de avaliação periódica de desempenho, que ainda não foi regulamentado por lei, como manda o diploma constitucional. Que se faça apenas essa regulamentação, portanto, com todos os cuidados, para que sejam adotados critérios técnicos e objetivos de avaliação, eliminando qualquer possível vício de subjetividade.
Ninguém é contra a modernização do Estado pura e simplesmente. Deve ser possível transformar cargos que ficaram obsoletos, como datilógrafos ou operadores de videocassete, em atividades mais atuais, aproveitando os seus eventuais ocupantes em novas funções. Contudo, conferir “superpoderes” para o presidente da República extinguir ou criar órgãos e autarquias por decreto, como propõe a PEC, é uma temeridade, além de flagrantemente inconstitucional.
A proposta propõe ainda a ampliação de vínculos precários, temporários, sem concurso público. Mas quem garante que isso gerará economia para o Estado, que seria a suposta justificativa da coisa toda? Empresas prestadoras de serviço visam lucro, o que embute um risco claro de superfaturamento na hora das contratações.
Além disso, o concurso é a forma mais democrática de acesso ao serviço público, pois permite que todos os cidadãos se preparem e disputem a vaga em igualdade de condições. Principalmente depois da adoção das cotas, que compensam injustiças históricas e consagram o princípio da igualdade, de que devemos “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida da sua desigualdade”, como enunciou Aristóteles. Por meio das provas dos certames, os mais preparados são aprovados. Não causa espécie que esse povo que adora falar em meritocracia agora queira acabar com o concurso público, talvez a sua mais bem-acabada expressão?
Os servidores públicos não são o maior problema do Brasil. Não temos servidores em excesso, pelo contrário. De acordo com estudo do Banco Mundial, a relação entre o número de funcionários públicos ativos e a população do Brasil é de 5,6%, bem mais baixa que a média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que é de 9,6%. O nosso número de servidores corresponde a 12,5% do total de empregados no país, enquanto a média dos países da OCDE é de 21,1%.
O que temos é uma população enorme, de mais de 210 milhões de habitantes, que precisa obviamente de um grande número de servidores bem treinados e que possam trabalhar livremente, sem pressões políticas, para atender o nosso povo como ele merece. Precisamos de investimentos adequados nos equipamentos públicos, não de sucateamento e desmantelamento para depois privatizar tudo a preço de banana. Precisamos de uma reforma que enfrente sim o gasto desproporcional e imoral com a casta de privilegiados do serviço público, que não será atingida por essa proposta.
Paulo Guedes fala na mensagem que acompanha a PEC que a reforma é baseada no “foco em servir: consciência de que a razão de existir do governo é servir aos brasileiros” e na “valorização das pessoas: reconhecimento justo dos servidores, com foco no seu desenvolvimento efetivo”. Mas, lamentavelmente, como tudo que vem deste governo, a sua proposta entrega justamente o contrário.
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