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No dia 5 de janeiro de 2021, foi publicada pelo DOU a Resolução CNE/CP nº 01-2021 que dá nova forma e conteúdo às Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Profissional e Tecnológica (DCNEPT) aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação. Esse conjunto de diretrizes vem completar o conjunto de instrumentos legais e normativos que instituem a contrarreforma do Ensino Médio, desencadeada a partir da MPV nº 746/2016, convertida na Lei nº 13.415/2017. Ainda integram essa contrarreforma as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM – Resolução CNE/CEB nº 03/2018), a Base Nacional Curricular Comum (BNCC – Resolução CNE/CEB nº 04/2018) e a quarta versão do Catálogo Nacional de Cursos Técnicos (CNCT – Resolução CNE/CEB nº 02/2020).
Inicialmente, é fundamental explicitar o contexto de recrudescimento da ideologia neoliberal em que ocorreu a gênese dessa contrarreforma. Apesar de alguns antecedentes, o principal marco é o processo de golpe em curso contra a sociedade brasileira desencadeado a partir de 2016, cujo objetivo é reconfigurar o Estado visando a torná-lo ainda “mais mínimo” para a garantia dos direitos sociais e “mais máximo” na regulação dos interesses do grande capital nacional e internacional, especialmente o capital financeiro (especulativo), tendo como primeiro ato o impedimento da presidenta Dilma Rousseff. Do ponto de vista do golpe, essa foi uma medida imprescindível às ações subsequentes, todas coerentes com esse objetivo, dentre as quais destacam-se: Lei nº 13.365/2016, que altera o marco regulatório da exploração de petróleo do pré-sal; Emenda Constitucional nº 95/2016, que congelou os investimentos nas áreas sociais por vinte anos; Reforma Trabalhista; Reforma da Previdência, dentre outras, incluindo a própria contrarreforma do Ensino Médio.
Esse quadro, já extremamente grave, de avanço do ultraliberalismo econômico engendrado a partir de 2016 sofre uma inflexão para pior, quando, a partir de 2019, agrega-se o ultraconservadorismo de costumes, que também incorpora o negacionismo da ciência e a tecnocracia militarista. Essas forças nem sempre estão de mãos dadas, mas têm um projeto comum em torno do qual se unem: atacar os direitos sociais arduamente conquistados ao longo do tempo pela classe trabalhadora mais empobrecida deste país e, ao mesmo, a regular os interesses do capital.
A contrarreforma do ensino médio em seu conjunto, e, em particular, das DCNEPT (nesta análise também se inclui o Relatório do Parecer CNE/CP nº 17/2020, que deu origem a essas diretrizes), pode ser sintetizada pelo direcionamento a uma completa fragmentação da etapa final da educação básica, privando os filhos da classe trabalhadora mais empobrecida do acesso aos conhecimentos produzidos e acumulados pela humanidade e, ao mesmo tempo, promovendo sua privatização via parceria público-privado que, na prática transfere recursos públicos à iniciativa privada para que ela, de um lado, defina a concepção de ensino e, de outro, oferte ou gerencie (administre, avalie e controle) a educação que será proporcionada à população.
No caso específico das DCNEPT, seu sentido geral é coerente com toda a lógica até aqui explicitada, diante do que passamos a destacar alguns dos aspectos bastante preocupantes que se configuram como ataques ao direito de todos à educação básica e profissional de qualidade socialmente referenciada.
O texto das DCNEPT carece de consistência teórica, pois o que o marca é a indefinição ou oscilação no que se refere às concepções educacionais que apresenta, situando-o no âmbito das críticas acadêmicas dirigidas a documentos oficiais relativos às reformas da década de 1990 (decreto 2208/1997, por exemplo). Uma dessas críticas, apoiada em Bernstein, chama a atenção para os processos de recontextualização que tendem a se fazer presentes no campo da produção curricular, entendida como produção cultural, na forma de híbridos, ou seja, de proposições produzidas pela hibridização de discursos curriculares distintos, os quais propõem articular, como se apoiados na mesma referência teórico-epistemológica, matrizes teóricas (políticas) de natureza diversa.
Assim, expressões e conceitos do referencial crítico, como “trabalho como princípio educativo”, “pesquisa como princípio pedagógico”, “formação humana integral”, “integração entre trabalho, ciência, tecnologia e cultura como eixos estruturantes da formação humana”, “mundo do trabalho”, são utilizados juntamente com expressões e conceitos próprios do pensamento neoliberal, como “competências para a laborabilidade”, “empreendedorismo”, “protagonismo”, “competências socioemocionais”, “empregabilidade”, “mercado de trabalho”, dentre outros. Apenas como exemplo, pois isso é recorrente ao longo do texto das DCNEPT, transcrevem-se, abaixo, os incisos IV e V do “artigo 3º. São princípios da Educação Profissional e Tecnológica”. Sobre tal questão, considere-se que o uso de termos originados em campos opostos teórica e politicamente não ocorre por equívoco de quem o produziu, mas com a clara intencionalidade de distorcer, propositalmente, os conceitos para dificultar a interpretação por parte do leitor pouco atento ou com pouco domínio sobre eles.
IV – centralidade do trabalho assumido como princípio educativo e base para a organização curricular, visando à construção de competências profissionais, em seus objetivos, conteúdos e estratégias de ensino e aprendizagem, na perspectiva de sua integração com a ciência, a cultura e a tecnologia;
V – estímulo à adoção da pesquisa como princípio pedagógico presente em um processo formativo voltado para um mundo permanentemente em transformação, integrando saberes cognitivos e socioemocionais, tanto para a produção do conhecimento, da cultura e da tecnologia, quanto para o desenvolvimento do trabalho e da intervenção que promova impacto social.
Tal uso combinado desse conjunto de conceitos e expressões francamente antagônicos, ao operar com vários hibridismos que estabelecem uma ambiguidade, visa ocultar as verdadeiras contradições internas do seu conteúdo, fazendo parecer que tais diretrizes contemplariam práticas educacionais distintas. Todavia, no fundo se apropria de formulações avançadas para submetê-las aos seus eixos centrais que são: a privatização, a fragmentação e o barateamento da educação básica e profissional e a desqualificação do ensino público com vistas a seu esvaziamento como direito social e sua transformação à condição de mercadoria.
A Educação Profissional Técnica de Nível Médio (EPTNM), segundo as DCNEPT, pode ser proporcionada de forma integrada, concomitante, concomitante intercomplementar e subsequente ao ensino médio. O texto prioriza, claramente, a forma concomitante, o que, por si só, já representa forte ameaça à continuidade da construção do Ensino Médio Integrado (EMI) como perspectiva formativa fundamentada na politecnia, na omnilateralidade e na escola unitária que convergem para uma concepção de formação humana integral do cidadão. Não obstante, ao analisar a proposta da forma integrada constante nas DCNEPT, constata-se sua total incoerência e antagonismo com o EMI que vem sendo construído tendo como base a concepção acima mencionada – formação humana integral.
Sobre o modelo de organização curricular, segundo as DCNEPT, é a BNCC seguida do itinerário Formação Técnica e Profissional que corresponde à forma integrada de articulação entre o ensino médio e a EPTN. Não obstante, uma análise não muito aprofundada permite concluir que não há compatibilidade alguma entre a concepção de EMI e o que as DCNEPT apresentam como sendo a forma integrada.
A fragmentação dos processos formativos é explícita, principalmente, em:
Art. 15. A Educação Profissional Técnica de Nível Médio abrange:
I – habilitação profissional técnica, relacionada ao curso técnico;
II – qualificação profissional técnica, como etapa com terminalidade de- curso técnico;
[…]
§ 2º A qualificação profissional como parte integrante do itinerário da formação técnica e profissional do Ensino Médio será ofertada por meio de um ou mais cursos de qualificação profissional, nos termos das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM) desde que articulados entre si, que compreendam saídas intermediárias reconhecidas pelo mercado de trabalho. (grifos nossos)
Art. 23. O planejamento curricular […] é definido pela explicitação dos conhecimentos, habilidades, atitudes, valores e emoções, compreendidos nas competências profissionais e pessoais, que devem ser garantidos ao final de cada habilitação profissional técnica e das respectivas saídas intermediárias correspondentes às etapas de qualificação profissional técnica; […].
Nos artigos 15 e 23, acima transcritos, explicita-se essa fragmentação. Em primeiro lugar, o itinerário Formação Técnica e Profissional alberga dois tipos de formação: habilitação mediante conclusão de um curso técnico de nível médio, Formação Técnica, conforme CNCT; habilitação por meio de um conjunto de cursos de qualificação profissional, regulados pela Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), Formação Profissional. Nessa Formação Profissional, o estudante receberá certificação de conclusão de ensino médio, mas não será técnico de nível médio, porém detentor de um conjunto de qualificações de curta duração desarticuladas entre si e completamente fragmentadas. Mas, o problema da fragmentação também está presente na habilitação Formação Técnica, conforme explicitado no artigo 23 ao mencionar as saídas intermediárias. Ou seja, a própria habilitação técnica será organizada de forma fragmentada.
Além disso, a prática profissional, elemento estruturante do processo formativo teórico-prático, quando inserida no contexto de uma oferta não presencial, como é autorizado pelas DCNs, perde seu sentido humano-operacional ao permitir que os educandos se formem numa profissão sem vivenciarem o sentido ontocriativo do trabalho. A combinação da EPT com a EAD possibilita, ainda, o barateamento da oferta da educação profissional que prescindirá de infraestrutura, podendo reduzir-se ao uso de vídeos e simulações sem a participação direta dos educandos no processo de trabalho.
Já o artigo 26 se encarrega de determinar a limitação do acesso dos estudantes aos conhecimentos, ao estabelecer em seu § 1º que:
Os cursos de qualificação profissional técnica e os cursos técnicos, na forma articulada, integrada com o Ensino Médio ou com este concomitante […] terão carga horária que, em conjunto com a de formação geral, totalizará, no mínimo, 3.000 (três mil) horas […] garantindo-se carga horária máxima de 1.800 (mil e oitocentas) horas para a BNCC […].
A limitação de carga horária da BNCC (máximo de 1800 horas) e sua natureza conceitual e epistemológica empobrece e corrói a educação geral antes prevista como conjunto de conhecimentos do ensino médio, impedindo que seu conteúdo ofereça a compreensão dos fundamentos científicos da produção moderna. Este é um dos problemas extremamente graves, pois limita diretamente o acesso dos estudantes aos conhecimentos ao adotar como referência não um mínimo, mas um máximo de carga horária. Assim, a racionalidade que emana na norma é de que há um máximo de conhecimentos a serem adquiridos e que o cidadão não pode ir além daquele teto, o que, evidentemente, somente se aplicará, na prática, aos estudantes provenientes dos fragmentos da classe trabalhadora. É óbvio que os filhos dos estratos mais bem aquinhoados não estão abrangidos por essa restrição.
Outro aspecto estarrecedor das DCNEPT é a defesa incondicional da atuação dos “profissionais com notório saber” no itinerário formativo “formação técnica e profissional” e a compreensão assumida sobre o perfil desses profissionais, quando comparados aos professores que atuam na educação básica. O Relatório do Parecer CNE/CP nº 17/2020, o qual deu origem às DCNEPT, defende que os estudantes do ensino médio que cursarem o itinerário Formação Técnica e Profissional terão dois perfis de professores bem distintos. Os professores da BNCC terão a função de “formação geral do estudante”, enquanto os profissionais que atuarão no itinerário devem prepará-los para saber trabalhar em um contexto profissional cada vez mais complexo e exigente de qualificação profissional demandada pelo mercado de trabalho.
Acrescenta ainda que:
Ao admitir a possibilidade de reconhecimento do notório saber aos docentes que atuam na formação técnica e profissional, sana uma dívida histórica em relação à EPT, ao reconhecer que a formação profissional se baseia em saberes que não estão necessariamente vinculados aos respectivos níveis de ensino.
Não se trata de uma relação necessária com nível de escolaridade; mas sim de dispor das competências necessárias para desenvolver nos estudantes as capacidades técnicas atinentes a um determinado perfil profissional (p.16).
A racionalidade assumida é de que não existe integração entre ensino médio e EPTNM, ratificando o que já foi afirmado anteriormente: a prioridade é pela concomitância em detrimento do EMI. Além disso, defende que o professor do itinerário “formação técnica e profissional” não tem responsabilidade no que concerne à formação integral dos estudantes, mas, apenas, com a preparação instrumental para um determinado posto de trabalho demandado pelo mercado. Como se não bastasse, induz o leitor à ideia de que o docente desse itinerário, além de não precisar ser formado como tal, sequer precisa ter nível superior, mas, apenas, “dispor das competências necessárias para desenvolver nos estudantes as capacidades técnicas atinentes a um determinado perfil profissional”. O que nega, radicalmente, a profissão docente e ratifica a precarização da formação dos estudantes já discutida anteriormente, em coerência com o modelo da competência.
Na verdade, no atual contexto nacional já caracterizado, ainda que de forma breve, na parte introdutória deste documento, a proposta é a de privatizar todo o setor público. Portanto, vai muito além da esfera educacional. Ao país está sendo imposta uma nova onda de privatização em todos os espaços da ação do estado. Por isso, abrange, inclusive, todos os níveis, etapas e modalidades educacionais. Ou seja, da educação infantil à pós-graduação stricto sensu, o que, evidentemente, inclui a EPT.
Entretanto, na educação, em geral, e na EPTNM, em particular, a estratégia privatizante preferencial não está sendo a forma direta: criação de novas empresas privadas para competir no mercado pela captação de alunos-clientes. Ao invés disso, a opção preferencial do mercado educacional está sendo a captação do fundo público, onde quer que se encontre, por meio de parceria público-privada para proporcionar, inclusive, a própria oferta educacional pública. Dessa forma, avança uma espécie de privatização endógena, onde a própria oferta pública é fortemente influenciada pelos interesses da iniciativa privada.
Nesse sentido, as DCNEPT se inserem integralmente nessa racionalidade. Ao longo do texto são recorrentes expressões que se referem às parcerias público-privadas, sob o argumento de otimizar a utilização da capacidade instalada existente na esfera privada, a qual pode ser disponibilizada ao setor público, quando, na verdade, o objetivo privatista é, ao mesmo tempo, acessar, o máximo possível, os recursos advindos dos impostos e, cada vez mais, garantir que a concepção de formação humana que alcançará a população seja aquela que lhes interessa: educação subordinada aos interesses do mercado. Fortalecendo, portanto, a educação para o mercado e o mercado da educação.
No Brasil, ao contrário do que os representantes governamentais e empresariais têm declarado à imprensa, as mudanças educacionais impostas não contemplam nem mesmo a formação de mão-de-obra qualificada para o mercado. O descaso com a educação pública parece expressar a ausência de demandas socioeconômicas por produção de ciência e tecnologia em país cuja economia se especializa em criar empregos e/ou ocupações de baixa qualificação (com a destruição permanente de cadeias produtivas, o declínio da participação da indústria de transformação, em especial a metal – mecânica no PIB).
A nova inserção do Brasil na divisão internacional do trabalho privilegia setores primários exportadores, em particular a mineração, agroindústria, construção civil e pesada, e não privilegia o emprego qualificado. Os motores da acumulação concentram-se, ainda, em outros setores que não empregam trabalho especialmente qualificado, tais como o setor de serviços, a indústria financeira, os call centers, isto é, o telemarketing. O enorme desemprego, a flexibilização, informalização e precarização do trabalho têm redefinido as bases sociais da classe trabalhadora, afetando de forma singular o futuro de amplos setores da juventude trabalhadora.
A educação neoliberal dirigida à juventude trabalhadora parece se reduzir à transmissão de conhecimentos operacionais ao exercício de uma ocupação ou atividade considerada socialmente útil, a um presente ao qual custe o que custar o jovem trabalhador deve se adaptar. A conformação de uma nova subjetividade à classe trabalhadora deve suprimir a utopia de sua liberação. Na justa expressão de André Tosel, a época da escola neoliberal é “a da escola desemancipadora” (Tosel, A. Vers l´école désémancipatrice. La Pensée, n. 318, abril-jun 1999, op. cit. Laval, C. A escola não é uma empresa, Londrina: Ed. Plana, 2004, p.42).
Diante dessa breve e preliminar análise das novas DCNEPT no que se refere à EPTNM, conclui-se que é urgente o envolvimento de todas e todos, profissionais da educação, estudantes, familiares, órgãos, instituições, escolas, coletivos, entidades, redes estaduais e municipais, rede federal, etc., que defendam a educação como direito social público, igualitário e universal para, de forma articulada, organizar a resistência à implementação do Parecer CNE/CP n0 17/2020 e da Resolução CNE/CP n0 01/2021, em sua totalidade, pois a racionalidade que os sustenta não permite aceitação ou negação parcial. É essencial refutar, veementemente, o seu todo.
20 de Janeiro de 2021
Abecs
Abrapec
Adufes
Anfope
Anpae
Anped
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Cedes
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Por: Sinasefe Nacional