“Um professor falou que eu não estava entendendo o conteúdo porque as mulheres não conseguem projetar o espaço tridimensional, e que a neurociência explicava isso” – Juliana Davoglio Estradioto, jovem cientista brasileira.
Este texto é dedicado a todas as mulheres que fazem ciência no Brasil, em especial à amiga Alessandra Nava, pesquisadora da FioCruz Amazônia.
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“Um professor falou que eu não estava entendendo o conteúdo porque as mulheres não conseguem projetar o espaço tridimensional, e que a neurociência explicava isso” – Juliana Davoglio Estradioto, jovem cientista brasileira.
Este texto é dedicado a todas as mulheres que fazem ciência no Brasil, em especial à amiga Alessandra Nava, pesquisadora da FioCruz Amazônia.
(Antes de iniciar a leitura deste texto, permita-se responder à seguinte pergunta: Quantas cientistas mulheres você conhece? Nomeie-as. Faça o mesmo em relação aos cientistas homens que você consegue enumerar).
No ultimo dia 11 de fevereiro comemoramos, pelo quarto ano consecutivo, o Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência, efeméride adotada oficialmente na Assembléia Geral da ONU de 22/12/2015 através da Resolução A/RES/70/212, em reconhecimento ao trabalho da Unesco e Onu Mulheres e, principalmente, em razão da importância dos temas ciência e equidade de gênero para implementação da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.
Desde o século V, início da Idade Média ou Idade das Trevas, até praticamente o século passado, as mulheres foram sistematicamente excluídas do mundo do conhecimento e da produção científica ocidental. Certo é que, nem sempre foi assim. Nas civilizações antigas, as mulheres participavam ativamente na medicina. Na Grécia antiga, a filosofia natural era aberta às mulheres. Nos séculos I e II, as mulheres eram ativas cientificamente, notadamente na protociência da alquimia. Com a ascensão do cristianismo e a queda do Império Romano, a vida das mulheres cientistas tornou-se muito difícil, como foi o caso de Hipátia de Alexandria (370-415), a primeira mulher matemática da história, inventora do hidrômetro e do astrolábio, assassinada por cristãos fanáticos em 415 dC. Diz-se que sua morte marcou o fim da participação ativa das mulheres na ciência por séculos.
Na Idade Média (sec. V-XV), apenas às freiras, nos conventos, era permitido o estudo. Em que pese as Universidades tenham sido criadas no século XI, nessa época as mulheres estavam excluídas da vida acadêmica, com raríssimas exceções, a exemplo da Universidade italiana de Bolonha, que permitiu às mulheres que assistissem palestras desde seu início, em 1088. As Universidades italianas eram as mais acessíveis às mulheres. A médica Trotula di Ruggiero (1050-1097), pioneira da ginecologia e obstetrícia, estudou na Universidade de Salerno, a primeira universidade de medicina da Europa Medieval, onde estudaram muitas mulheres da nobreza italiana, as “senhoras de Salerno”.
Mas essas exceções pontuais não apagaram as dificuldades e o preconceito cultural contra a educação e a participação das mulheres na ciência durante a Idade Média, tendo escrito São Tomás de Aquino, sobre a mulher: “Ela é mentalmente incapaz de desenvolver uma posição de autoridade”.
A resistência de grandes nomes da intelectualidade feminina medieval e o crescente número e poder das freiras – como Hildegard de Bingen (1098 – 1179), que antecipou ideias gravitacionais séculos antes de Newton, e Hroswitha de Gandershein (935 – 1000), que encorajava as mulheres a serem intelectuais – provocaram a reação do alto clero patriarcal, e ainda no século XI, enquanto universidades eram abertas só para homens, muitas ordens religiosas fecharam as portas para as mulheres, excluindo-as da oportunidade de aprender a ler e escrever.
A Revolução Científica (séc. XVI e XVII) pouco fez para mudar a ideia vigente de que mulheres e homens não tinham igual capacidade para contribuir com a ciência. Segundo Jackson Spielvogel, no capítulo 16 de sua renomada obra Uma Breve História da Civilização Ocidental: “os cientistas do sexo masculino usaram a nova ciência para propagar a visão de que as mulheres eram por natureza inferiores e subordinadas aos homens e adequadas a desempenhar um papel doméstico como mães”.
Ainda na Alemanha do entresséculos XVII-XVIII, pequeno percentual dos astrônomos eram mulheres, uma das quais Maria Winkelmann, que a despeito de ter recebido ensinamentos do pai, tio, parentes e do marido, de quem foi assistente do Observatório Astronômico de Berlim – e, onde, inclusive, descobriu um cometa -, não foi admitida, após a morte do marido, à vaga de assistente da academia de Berlim, para a qual tinha ampla experiência, pois, segundo os membros da academia, a contratação de uma mulher daria “um mau exemplo” e pessoas ficariam boquiabertas.
No século XVIII, apesar da resistência de intelectuais centrais da época, como Jean-Jacques Rousseau – para quem o papel das mulheres se restringia à maternidade e a servir seus parceiros – o Iluminismo abriu espaço para as mulheres nas ciências pela ascensão da cultura de salões da Europa, espaços que reuniam homens e mulheres em ambientes aconchegantes para discussões filosóficas sobre política, sociedade e ciência. Já que às mulheres era reservado o espaço privado, doméstico, foi a partir da cultura de salões que as mulheres puderam participar mais ativamente da produção intelectual e científica e que trabalhos de mulheres em matemática, física, botânica e filosofia começaram a ter influência e reconhecimento oficial no mundo científico.
Foi no século XVIII, assim, que a primeira mulher ganhou uma cadeira acadêmica científica para lecionar em uma universidade: a física italiana Laura Bassi (1711-1778) foi admitida na Academia de Ciências da Bolonha em 1732. Dorothea Erxleben (1715-1762) foi autorizada pelo rei da Prússia – Frederico, o Grande – a estudar medicina na universidade de Halle, sendo a primeira médica mulher reconhecida oficialmente, na Alemanha e no mundo. Erxleben, em que pese seu diploma, sofreu muito preconceito e escreveu um tratado sobre a educação das mulheres e os obstáculos que as impediam de estudar. Entre os séculos XVII e XIX, eram também muito comuns as figuras das “esposas científicas”, mulheres que faziam ciência à sombra de seus maridos cientistas, como foi o caso de “Madame Lavoisier”.
E, embora a botânica tenha tido entre uma de suas fundadoras Maria Sybilla Merian (1647-1717), o sistema de classificação de plantas por suas características sexuais, por Carlos Lineus – o pai da taxonomia moderna – foi uma barreira ao aprendizado das mulheres nessa área, porque se temia que mulheres aprendessem lições imorais a partir do exemplo da natureza. As mulheres ainda eram retratadas como inatamente emocionais e incapazes de raciocínio objetivo, ou como mães naturais reproduzindo uma sociedade moral e natural. Anota-se que, a despeito dos papeis de gênero terem permanecido praticamente inalterados, no século XVIII muitas mulheres protagonizaram grandes avanços na ciência e em direção à igualdade de gênero nas ciências.
Já no início do século XIX, Caroline Hershell (que, ainda no século XVIII havia descoberto oito cometas e foi a primeira mulher a submeter um índice à Royal Society de Londres) e Mary Fairfax Somerville foram as duas primeiras mulheres a serem admitidas em 1835 como membras honorárias da Royal Astronomic Society. A matemática inglesa Ada Lovelace (1815-1852), filha do poeta Lord Byron, escreveu o primeiro algoritmo do mundo e é considerada a primeira programadora de computadores da história. É tão importante para a ciência, que tem um dia dela no calendário: toda segunda terça-feira de outubro é o Lovelace Day.
Ainda no início do século XIX foram fundados institutos para a educação superior de mulheres na Europa, como o criado por Florence Nightngale (“A dama da lâmpada”), famosa enfermeira britânica pioneira no tratamento a feridos de guerra, durante a Guerra da Crimeia (1853-1856). Nightngale também contribuiu no campo da estatística, sendo pioneira na utilização de métodos de representação visual de informações (gráficos setoriais ou gráficos pizzas). A matemática autodidata francesa Marie Sophie Germain (1776-1831), estudou na Escola Politécnica fazendo-se passar por um aluno do sexo masculino, e utilizava o pseudônimo de Le Blanc. Marie Sophie Germain teve fundamentais contribuições à teoria dos números e à teoria da elasticidade, e atualmente dá nome a um prêmio anual de matemática da Academia de Ciências de Paris.
James Barry, nascido Margaret Ann Bulkley foi a primeira britânica a obter qualificação de médica “fazendo-se passar por homem” em 1812; apenas em 1865 Elizabeth Garrett Anderson (1836-1917) foi a primeira mulher britânica a se qualificar médica sem precisar se passar por homem e fundou em 1874 a primeira universidade de medicina para mulheres.
A segunda metade do século XIX aumentou substancialmente o número de oportunidades de educação formal para mulheres, sendo fundadas escolas para mulheres com conteúdo semelhante às dos meninos e homens. Na Prússia, as mulheres puderam frequentar universidades a partir de 1894 e em 1908 foram eliminadas todas as restrições que eram impostas às mulheres na academia. A ascensão dessas ‘”faculdades das mulheres”, do final do século XIX, proporcionou empregos às mulheres cientistas e oportunidades de educação e crescimento exponencial de doutoramento de mulheres em diversas áreas da ciência. Também cresceu o número de escolas mistas ou de “coeducação”, sendo que em 1875 havia 3000 mulheres nesse sistema e em 1900 já eram 20.000.
Já no século XX, o grande divisor de águas de oportunidades acadêmicas e científicas para as mulheres foi a Segunda Guerra Mundial.
Antes mesmo da II Grande Guerra, muitas mulheres cunharam seus nomes por grandes feitos na ciência, como a física Marie-Curie (1867-1934) que fez importantes descobertas na área de radiotividade, tendo isolado os elementos radio e polônio. Foi a primeira mulher a receber o prêmio Nobel (em física, 1903) e a primeira pessoa a receber duas vezes o Nobel (em química, em 1911), feito até hoje só conseguido por quatro pessoas. É considerada a grande dama da ciência, e sua vida é contada em dois filmes, um de 1943 e outro de 2014.
Vale referir ainda a física austríaca Lise Meitner (1878-1968) que com suas descobertas sobre fissão nuclear é considerada a mãe da era atômica. E, a geodesista e sismologista dinamarquesa Inge Lehmann (1888-1993) que descobriu o núcleo duro do planeta Terra. Dentre tantas outras.
A trajetórias das mulheres cientistas na primeira metade do século XX, notadamente nos EUA, está contada nas obras de Margaret Rossiter. Destacam-se, entre as cientistas do período, a astrônoma estadunidense Annie Jump Cannon (1863-1941), cujo trabalho foi fundamental na classificação das estrelas, pela temperatura. Era uma das “mulheres de Pickering” (diretor do observatório astronômico) e seu trabalho colaborou para que mulheres ganhassem respeito e aceitação na comunidade científica dos EUA.
Ainda, em 1925, a astrofísica britânica-americana Cecilia Payne-Gaposchkin (1900-1979) demonstrou, pela primeira vez, que as estrelas eram constituídas exclusivamente de hidrogênio e helio. E a médica canadense Maud Leonora Menten (1879-1960) fez importantes contribuições na cinética enzimática e na imuno histoquímica, sendo uma das primeiras mulheres a receber o título de doutora, no Canadá – e realizou pesquisas nos EUA e Alemanha, porque na época o Canadá ainda não autorizava investigações científicas por mulheres. Em 1935, Irene Joliot-Curie (1897-1956) – filha de Marie-Curie – ganhou Nobel de química pela descoberta da radioatividade artificial.
A Segunda Grande Guerra trouxe novas oportunidades às mulheres, notadamente nos EUA, em razão da escassez de trabalhadores, muitas mulheres conseguiram empregos antes inacessíveis.
A partir de 1941, o “Escritório de Pesquisa e Desenvolvimento Científico” dos EUA passou a registrar cientistas mulheres, muitas das quais participaram do “Projeto Manhattan”, pesquisa que desenvolveu a primeira bomba atômica durante a segunda Guerra, como Leona Woods Marshall (1919-1986), Katherine Way (1902-1995) e Chien Shiung Wu (1912-1997), esta última considerada a Marie-Curie do século XX e da China, a “rainha da pesquisa nuclear”.
Outras mulheres também contribuíram para o esforço de guerra, como Lydia Roberts (1879-1965), Hazel Stiebeling (1896-1989) e Helen S. Mitchelli (1895-1984), que em 1941 desenvolveram o IDR-Índice de Ingestão Diária Recomendada, em razão do racionamento alimentar a grupos de Guerra.
Rachel Carson (1907-1964), bióloga marinha que trabalhou no Serviço Americano de pesca e vida selvagem, autora da grande obra de literatura documental científica “Primavera Silenciosa”, de 1962 (obra que denunciou os malefícios dos pesticidas e inaugurou o movimento ambientalista global), também editou brochuras sobre a importância da ingestão de peixes e frutos do mar e contribuiu para o desenvolvimento de técnicas de detecção e submarinos, durante a segunda Guerra.
Também a formação do Conselho Nacional de Mulheres Psicólogas está relacionada ao esforço de Guerra nos EUA, bem como a oceanógrafa Mary Sears (1905-1997) desenvolveu técnicas oceanógrafas militares. Florence Van Straten (1913-1992) estudou os efeitos do clima nos combates militares. A matemática Mina Spiegel Rees (1902-1997) foi assessora técnica principal do Painel de Matemática Aplicada do Comitê de Pesquisa da Defesa Nacional dos EUA. A matemática Grace Hopper (1906-1992) foi analista de sistemas da marinha estadunidense e uma das primeiras programadoras do Harvard Mark I, primeira e maior calculadora digital automática do mundo, desenvolvida em 1944 por Harvard em parceria com a IBM.
A matemática da NASA Katherine Johnson (1918-*) foi a responsável por certificar que os cálculos da primeira missão estadunidense ao espaço estivessem corretos. Ela era uma verdadeira calculadora humana! Além de mulher, era negra e sua história foi contada no filme “Estrelas além do tempo”.
Os períodos pré e pós Segunda Guerra Mundial parecem, mesmo, ter delimitado uma fase de transição à almejada equidade de gênero nas oportunidades de produção científica e do reconhecimento pela ciência produzida por mulheres. Por exemplo, a bioquímica tcheca, radicada nos EUA, Gerty Cori (1896-1957) – que ganhou o prêmio Nobel de 1947 por descobrir o mecanismo pelo qual os músculos transformavam glicogênio em ácido lático e posteriormente a energia era armazenada – sofreu muito preconceito por ser mulher ao chegar nos EUA em 1922, passando por sérias dificuldades em conseguir postos de trabalho. Em 1931 a Universidade de Washington ofereceu cargos a ela e a seu marido, mas seu salário era muito menor que o do marido.
Na era pós-guerra, tanto nos EUA como na Europa, cresceu muito o número de mulheres cientistas de renome e grandes descobertas e feitos científicos foram encabeçadas por mulheres. Françoise Barré-Sinoussi (1947-*) teve trabalho fundamental na identificação do HIV como agente causador da Aids. A astrofísica inglesa Margaret Burbidge (1919-*), fez contribuições notáveis para a teoria de quasares, para medições da rotação e massas de galáxias, e para a compreensão de como elementos químicos são formados nas profundezas das estrelas através da fusão nuclear.
Rosalind Franklin (1920-1958), química e cristalógrafa, ajudou a elucidar as estruturas delicadas do carvão, do grafite, dos virus e do DNA. Em 1953 fotografou o DNA e seu trabalho foi a base fundamental para que Watson e Crick formulassem o modelo espiral da estrutura do DNA. Rosalind Franklin dá seu nome à sonda que explorará marte em 2021.
Jane Goodall (1934-*), maior especialista em chimpanzées do mundo. Rita Levi Montalcini (1909-2012), médica fisiologista, descobriu o fator de crescimento nervoso, o que lhe rendeu o Nobel em 1986. Foi a primeira laureada com o Nobel a chegar a 100 anos de idade. Em 2001 foi nomeada senadora vitalícia do Senado Italiano. Anne MacLaren (1927-2007), pioneira nos estudos genéticos que levaram à fertilização in vitro e foi a primeira mulher, em 331 anos, a exercer o cargo de Chefe da Royal Society. Bertha Swirles (1903-1999), física inglesa que pesquisou a física quântica em seus primórdios. A russa Valentina Tereshkova (1937-*) foi a primeira mulher a ir ao espaço em 1963. Linda Buck (1947-*) neurobióloga que ganhou o Nobel em 2004 por seu trabalho com receptores olfativos. Eugenie Clark (The Shark lady) (1922-2015), grande estudiosa do comportamento dos tubarões. Gertrudes B. Elion (1918-1999), química que descobriu a diferença entre células humanas normais e patógenos, prêmio Nobel de 1988. Sandra Faber (1944 -*), astrofísica estadunidense que liderou a equipe dos “Sete Samurais” que descobriram o “Grande Atrator”. Dian Fossey (1932-1985), zoológa que trabalhou na África com gorilas desde 1967 até ser assassinada em 1985. Andrea Ghez (1965-*), recebeu o prêmio McArthur “para gênios” em 2008 por seu trabalho em superar as limitações dos telescópios terrestres.
Barbara McClintock (1902-1992), citogenetiscista considerada uma das três figuras mais importantes da genética mundial, descobriu os elementos genéticos móveis que causam o fenômeno da transposição genética, o que lhe rendeu o Nobel em 1983. Lisa Randall (1962 – *), física teórica e cosmologista, sua missão é explicar o tecido do Universo. Foi a primeira mulher a receber “tenure” (proteção contra demissão sumária) do departamento de física da Universidade de Princeton, no MIT e em Harvard. Uma das cientistas mais citadas em física de partículas, foi eleita em 2007 como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo pela Revista Time. Vera Rubin (1928-2016), astrônoma pioneria no estudo das curvas de rotação das galaxias espirais, uma das principais evidências da matéria escura.
E, então? Quantas dessas cientistas você conhecia?
Na próxima semana, conversaremos sobre as pioneiras da ciência no Brasil, sobre os estudos da desigualdade de gênero na ciência, sobre desigualdade racial na ciência feminina, e quem são as jovens e brilhantes cientistas brasileiras que já estão deixando suas marcas na história. Até lá!
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Por: Fernanda Menna. 2019.
Disponível em Carta Capital: https://www.cartacapital.com.br/blogs/sororidade-em-pauta/quantas-mulheres-cientistas-voce-conhece/